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Tamara se movimenta com dificuldade e já quase não enxerga mais

UCRÂNIA

Por João Felipe R. Ferreira e Luisa Vincoletto

Com mais de 40 milhões de habitantes, a Ucrânia é o segundo país mais extenso de todo o território europeu. A composição étnica do país inclui diferentes grupos além dos próprios ucrânianos, tais quais bielorrussos, moldavos, tártaros e russos, esses últimos somam mais de 17% da população, segundo o Censo de 2001, e estão concentrados, principalmente, no leste do território. Como ocorre com inúmeros países do leste europeu, as fronteiras geopolíticas não representavam um impeditivo para a mobilidade da população, sendo que, muitas vezes, famílias inteiras encontram-se dispersas entre os territórios de diferentes países - o que já não é mais uma realidade depois da invasão russa em 2022. Essa pluralidade étnica, que conta com raízes históricas - dominação pela Polônia e Lituânia, posterior incorporação da Ucrânia na URSS -, se desdobra em uma diversidade linguística. Nesse sentido, Olivier Zajec, professor de ciência política na Université Jean Moulin Lyon 3, aponta que o desafio da Ucrânia é interno, e vai na direção do estabelecimento (e manutenção) de unidade, tanto política quanto identitária.

Um cenário já desgastado, marcado por tensões entre Rússia, Ucrânia e União Europeia, levou à eclosão de um conflito em 2014, que escancarou uma divisão entre o leste e o oeste do território. A eleição presidencial de 2010 fez com que ascendesse ao poder Viktor Yanukovych, representante de um posicionamento político alinhado com interesses Russos, contrapondo o modelo em vigor até então. A chegada de Yanukovych à presidência representou a recusa aos esforços de aproximação com a União Europeia, deflagrando uma onda de protestos no final de 2013. No ano seguinte, as manifestações se intensificaram – assim como a repressão por parte do governo – e culminaram na saída do presidente da capital em 22 de fevereiro. Em eleições antecipadas, Petro Poroshenko assumiu como novo presidente, retomando aproximações com a UE. A partir de então, a presença do exército russo na Criméia se intensificou. Não existe consenso sobre denominar tal presença como uma invasão. Tendo em vista o Tratado de Partição de 1997, um acordo bilateral que previa a divisão do controle do porto de Sebastopol, o envio de tropas russas adicionais para a região era permitido. No entanto, o contexto não permite desconsiderar essa movimentação militar como uma possível estratégia ostensiva a fim de preservar a Criméia na área de influência russa. Para referendar tal movimentação, em março foi realizada uma votação visando consultar a população sobre a anexação da península à Rússia. Os números oficiais do referendo indicam a aprovação massiva dos crimeios à adesão, entretanto algumas ressalvas quanto a sua realização podem ser destacadas, tais como: a ausência de observadores internacionais, que não Russos; a remoção de transmissões dos canais de televisão ucranianos pouco após a convocação do referendo; além de um boicote ucraniano que impediu o acesso ao registro de eleitores.

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A Soviet-era gas mask rests on a tree outside the Chernobyl Nuclear Power Plant in Ukraine, Jan. 31, 2023 (VOANEWS/Yan Boechat)

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Soldados inspecionam tanque russo destruído na província de Kherson, Ucrânia

O conflito não teve uma conclusão bem demarcada, as tensões não se assentaram, mesmo após tentativas internacionais de assinatura de Protocolos, como os de Minsk (I e II). Kiev continuou a se aproximar das potências ocidentais principalmente depois da eleição, em 2019, do atual presidente Vladimir Zelensky. A invasão da Rússia ao território ucraniano em 24 de fevereiro de 2022 foi justificada pelo presidente russo, Vladimir Putin,  com base nesta aproximação e na tentativa de apagamento da cultura e população russa dentro da Ucrânia (alegação dada desde 2013, na época em razão do aumento de movimentos nacionalistas na Ucrânia e do descontentamento com a revogação da lei sobre línguas regionais, que restringiu os usos, dentre outras línguas, do russo na educação e na administração pública). Soma-se a isso, ainda segundo Putin, a possibilidade da Ucrânia se juntar à OTAN - organização criada em 1949 para se opor militarmente à URSS durante a guerra fria - , o que aumentaria consideravelmente a influência militar do Ocidente no leste europeu.  Por outro lado, a aproximação da Ucrânia ao Ocidente corresponde a uma tentativa de reduzir a subordinação do país em relação à Rússia, sendo que principalmente a dependência ucraniana do suprimento de gás russo estabelece uma relação de forças desigual entre os dois países. A invasão, que parecia improvável para inúmeros analistas, logo escalou para um conflito armado de longa duração, em grande parte devido à resistência Ucraniana que, com apoio internacional de cunho financeiro, militar e humanitário – especialmente dos Estados Unidos e da União Europeia –,  conseguiu conter o avanço do exército russo. 

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A crater in an apartment complex after a bomb sent mud and fire flying over the nearby buildings on Jan. 26, 2023 in Kherson, Ukraine.

A "guerra da Ucrânia", como tem sido chamada, é o primeiro conflito armado entre nações em território europeu desde o fim da segunda guerra mundial e despertou interesse generalizado das agências transnacionais de notícias, alguns diriam até mesmo um interesse desproporcional quando comparado a outros conflitos contemporâneos. A guerra não parece perto de acabar, com ambos os países se recusando a ceder às demandas do outro lado, e possui consequências econômicas amplas. Para além do choque entre os interesses geopolíticos das maiores potências mundiais, o conflito tem como consequência uma grande crise humanitária que inclui, segundo a Agência da ONU para Refugiados, mais de 12 milhões de deslocados internos e externos e cerca de outras 17 milhões de pessoas em necessidade de apoio humanitário urgente. No entanto, a resposta internacional ao conflito deflagra um "duplo padrão" de reação humanitária quando comparado a conflitos em outros territórios em que a população civil afetada é composta majoritariamente por pessoas não européias e não brancas.  Tanto no domínio institucional – quando consideramos as políticas de acolhimento a pessoas em situação de refúgio –, quanto em relação à cobertura pelos veículos de comunicação – na qual se reforça a proximidade cultural e a semelhança dos ucranianos em relação aos leitores – , as reações à "guerra da Ucrânia" revelam as raízes coloniais e racistas que continuam a informar a produção de sensibilidade e a opinião pública do ocidente. Elas também deixam evidente a distribuição desigual de recursos para o enfrentamento de crises humanitárias e abrem uma lacuna, diante da violência com a qual são tratadas, institucional e comunicacionalmente, as pessoas impactadas por conflitos que acontecem distantes do território europeu, demandando a criação e o estabelecimento de outras formas de atuação perante essas crises.

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