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VISÍVEIS E INVISÍVEIS

Guerras, Exílios e Vivências

Esta exposição nasceu da vontade de dar visibilidade ao drama dos refugiados e das pessoas em deslocamento forçado. Os números não são confiáveis, pois aumentam a cada dia. No entanto, o site da ACNUR (agência da ONU para refugiados) calcula que até o final de 2022 existiam mais de 108 milhões de pessoas deslocadas à força em todo o mundo, “como resultado de perseguição, conflito, violência, violação de direitos humanos ou eventos que perturbaram gravemente a ordem pública”. Este drama humanitário não é um tema novo, e foi constantemente fotografado desde que a câmera foi levada para situações de conflito. No entanto, ele pode por vezes passar desapercebido pelas pessoas que não estão envolvidas diretamente. Assim, a fotografia ainda desempenha um papel importante pois, como ressaltou Susan Sontag, “As fotos são meios de tornar ‘real’ (ou ‘mais real’) assuntos que as pessoas socialmente privilegiadas, ou simplesmente em segurança, talvez preferissem ignorar”.

Com esse objetivo em mente, a Cátedra Sérgio Vieira de Mello, na pessoa de Ana Carolina Maciel, mediou o encontro de três pontos de vista distintos. O de Yan Boechat, premiado fotojornalista brasileiro cuja longa e frutífera carreira vem documentando o lado humano de grandes conflitos armados, desastres ambientais, desigualdade e violência, no Brasil e no mundo. O meu, de curadora, enquanto pesquisadora das relações entre cultura visual e cultura política em fotografias de conflito por quase duas décadas. E o de alunos da UNICAMP que viveram a situação de refugiados ou possuem familiares em locais de conflito, para quem este debate é não um tema de estudo ou parte da profissão, mas uma vivência pessoal.

As imagens da exposição estão divididas em três seções que procuram abarcar a visão e o fazer fotográfico de Boechat. Trata-se de três camadas diferentes em que os conflitos impactam os indivíduos anônimos que os formam e os experienciam. “Os refugiados” se foca naqueles que foram obrigados a abandonar o lugar em que viviam. “A vida em meio à guerra” trata daqueles que não puderam ou não quiseram partir e precisam tocar a vida em meio à destruição ou violência. Finalmente, “A frente de batalha” mostra a camada mais próxima da ação, mas que aos olhos de Boechat é igualmente formada por dramas e histórias individuais.

Estas três seções estão espalhadas pelo Campus da UNICAMP, sem uma ordem de visita pré-determinada, de modo que as fotografias podem ser visitadas em conjunto e em sequência, ou individualmente, uma por vez. Elas também não estão separadas por conflitos ou países, já que a ideia é, por um lado, espelhar a ausência de território experienciada por pessoas em deslocamento forçado, e, por outro, mostrar não que todas as guerras são iguais, mas que os sofrimentos que elas causam podem ser partilhados.

A intenção é de deixar claro que esta exposição não pretende analisar em sua totalidade os conflitos abordados, ou contar uma história única e coesa sobre estes complexos eventos. Nenhuma fotografia é capaz disso. É próprio da imagem fotográfica ser uma fatia de espaço-tempo, que pode ganhar inúmeras interpretações diferentes, dependendo do contexto e de quem as vê. Como afirma Laurent Gervereau, “Nenhuma imagem tem valor por si só. Cada imagem testemunha as condições em que foi produzida. Nisso, elas fornecem percepções diversas e complementares”.

A VIDA EM MEIO A GUERRA

Boechat tem plena consciência das condições de produção das suas fotografias, em especial o seu olhar estrangeiro, que necessita ser mediado em vários níveis - desde especificidades culturais, passando por tradutores, até as permissões oficiais. Segundo ele, “a gente tem de pensar que o jornalista, em um ambiente de combate, é sempre visto pelas duas forças como um instrumento de propaganda”. “É por meio da gente (jornalistas) que as narrativas, as versões, que os racionais da guerra vão ser explicados para a opinião pública. Então, nós jornalistas precisamos ter muito cuidado em entender que a gente vai a algum lugar porque alguém permite que a gente vá a esse lugar”. Ou seja, as histórias e depoimentos a que ele tem acesso são sempre experiências parciais, que foram de antemão sancionadas para serem ouvidas.

Partindo das características específicas da fotografia documental, esta exposição busca oferecer entradas multifacetadas que permitam ver as diversas camadas interpretativas que cada um desses conflitos possui. Assim, o desafio da curadoria foi mergulhar no universo limitado de assuntos e pautas cobertas por Boechat, e selecionar fotografias que pudessem comunicar não a totalidade histórica de cada uma das guerras abordadas, mas aspectos de um olhar específico sobre estes eventos. Na condição de correspondente internacional, o olhar de Yan Boechat é o olhar de um estrangeiro, que busca traduzir o que vê para o seu público brasileiro e por vezes internacional. Essas sucessivas mediações são também próprias da imagem fotográfica pois ela se constrói histórica e culturalmente, nunca é algo neutro. Como afirma Caroline Brothers, “simplesmente ao olhar, o espectador é envolvido em um padrão altamente estruturado de visão e representação. O significado não é inerente à fotografia em si, mas à relação entre a fotografia e a matriz de crenças e pressupostos culturalmente específicos a que ela se refere”. A fotografia é então o lugar onde esses pressupostos, normalmente invisíveis, se manifestam. Ela se constitui assim como um excelente ponto de partida para o diálogo e para o debate.

 

Erika Zerwes

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