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A FOTO DE GUERRA

Por Erika Zerwes

A guerra, que desde Homero é o evento épico por excelência e que naturalmente sempre atraiu a atenção como notícia na imprensa, possui profundas ligações históricas com a fotografia.

 

Se considerarmos 1839 como data inaugural da fotografia, vemos que ela esteve já presente nos primeiros conflitos armados que se seguiram: em Saltillo, na Guerra do México, um fotógrafo de retratos ambulante fez fotografias em 1846. Em seguida, fotógrafos amadores registraram guerras na Índia e em Burma. Enquanto as fotografias mexicanas eram retratos de grupos de soldados e oficiais, as outras mostravam também cenas de cidade destruídas pela guerra. A maioria destas fotografias, no entanto, se perdeu.


Foi na Crimeia (1853-1856) que atuou Roger Fenton, considerado um dos principais pioneiros da fotografia de guerra. A obra de Fenton não só sobreviveu como deixou testemunhos sobre sua recepção. Em outubro de 1855 uma exposição foi montada em Londres, e a crítica na imprensa afirmou que  “Nenhuma descrição pode colocar diante de nós, com realidade tão palpável, as pessoas que figuraram naquele cerco [de Sebastopol] memorável, ou as localidades que constituíram o imenso teatro de operações”. Por descrição entende-se descrição escrita, o modo de narrar que predominava até então.

A guerra civil norte-americana (1861-1865) foi um marco na fotografia de guerra. Entre outros motivos, ela foi a primeira a ser fotografada por locais, e não por aventureiros em lugares longínquos ou exóticos - como Fenton, cujas imagens foram recebidas com um ar de curiosidades coloniais na Europa. Na guerra norte-americana os registros foram feitos sob o signo da urgência da comunicação dos eventos e da notícia na imprensa.

 

Já na virada do século XIX para o XX a fotografia de guerra, que até então circulava prioritariamente em livros e álbuns, ganhou seu lugar na imprensa ilustrada. Por sua característica épica, como palco de jogos políticos e dramas humanos, a guerra já possuía status de notícia privilegiada na imprensa. A busca por fotografias que a representassem explodiu nesse momento, quando os jornais e revistas se tornaram tecnicamente capazes de imprimir esse tipo de imagem. 

 

Com as guerras europeias da primeira metade do século XX, a fotografia ganhou papel central na imprensa, e o fotógrafo de guerra passou a ser um sujeito social reconhecido. Baseada na antiga noção de que a fotografia seria uma reprodução fidedigna do real, bem como uma linguagem universal, os meios de comunicação promoveram a figura do fotógrafo de guerra. Elevado à condição de testemunha privilegiada da história feita em tempo real, ele ajudou ao mesmo tempo a promover os jornais e revistas onde foi publicado. Essas guerras europeias foram se tornando mais destrutivas em suas tecnologias bélicas, e mais espetaculares em sua destruição. Das bombas de gás à bomba atômica, os fotógrafos responderam ao desafio de registrar os modos modernos de guerrear ao mesmo tempo em que a fotografia moderna ia se desenvolvendo. Por meio da imprensa ilustrada, se fortaleceu uma conhecida simbiose: a guerra fornece à fotografia um tema de grande apelo junto ao público, e a fotografia fornece à guerra meios eficazes de propaganda.

 

Uma das mais famosas fotografias de propaganda é a de um soldado do Exército Vermelho levantando a bandeira soviética no topo do prédio do Reichstag em Berlin. A imagem tem grande simbolismo de vitória e conquista. Como parte da cultura visual - e da cultura política - compartilhada pelos países que integravam o bloco soviético, não é casual que ela continue sendo usada. Um cartaz de propaganda russa feito com base nessa fotografia foi flagrado por Yan Boechat nas ruas da Ucrânia ocupada em 2018.

Após a Segunda Guerra Mundial foi se consolidando em todo o Ocidente uma cultura política que refletia um impulso de reconstrução das cisões causadas pela guerra. Essa reconstrução tinha como base um consenso quanto à valores humanistas retomados do pós-Primeira Guerra. Tal cultura política pautou a criação de organizações internacionais, como a ONU em 1945 e suas muitas agências, Unesco (1945), Unicef (1946), OMS (1948), ACNUR (1950), bem como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, estabelecida pela ONU em 1948. Alguns destes mesmos valores humanistas podem ser reconhecidos tanto na prática profissional quanto na estética da fotografia comprometida politicamente com o lado vencedor da guerra. 

 

No que diz respeito à prática profissional, segundo Susan Sontag a principal parte do fotojornalismo no imediato pós-guerra possuía ligações morais com as “novas organizações e associações internacionais” criadas naquele momento, como por exemplo a agência cooperativa Magnum. Esta que continua sendo a referência para os fotojornalistas de guerra, preconizava desde sua fundação uma atuação “ampla e eticamente árdua para os fotojornalistas: fazer a crônica de seu tempo, fosse este de guerra ou de paz, como testemunhas honestas, livres de preconceitos chauvinistas”. Devido à crença predominante em valores humanos compartilhados universalmente, a fotografia tornou-se então uma atividade mundial. Ainda conforme Sontag, “A nacionalidade do fotógrafo e sua filiação jornalística eram, em princípio, irrelevantes. O fotógrafo poderia ser de qualquer parte. E sua esfera de ação era o ‘mundo’. O fotógrafo era um errante que tinha como destino predileto guerras de interesse incomum (pois havia numerosas guerras).”

A busca por essa independência do olhar - por mais questionável que ela possa ser na prática - continuou presente na geração de fotógrafos que cobriram as guerras da segunda metade do século, em especial a guerra do Vietnã. O aparecimento da cobertura televisiva nesse momento alterou de muitos modos a prática fotojornalística. Entre eles, a fotografia perdeu um pouco da sua função de reportar a imediatez dos acontecimentos, abrindo espaço para abordagens consideradas mais autorais. Permaneceu, no entanto, sua intensa utilização como propaganda dos dois lados do conflito. Mais tarde, com o aparecimento das câmeras digitais, das mídias sociais e dos smartphones, a profissão seria quase que totalmente reconfigurada no nosso século.

No que diz respeito à estética, no entanto, parte do fotojornalismo comprometido ainda manteve certos pressupostos da fotografia produzida por membros do movimento internacional anti-fascista durante a década de 1930, consolidados na agência Magnum. Pensada a partir da escala humana, esta fotografia singularizou indivíduos anônimos, fazendo assim uma contraposição destes homens e mulheres à sociedade estruturada em massas e apologética da tecnologia. Os grandes atores - generais, políticos e armamentos sofisticados - são visíveis apenas por meio da destruição que promovem. Ao mesmo tempo, são tais indivíduos anônimos os que fornecem um rosto para a guerra, na figura do refugiado, do desabrigado, do ferido, do órfão, dos que precisam conviver com os efeitos da guerra a todo momento de suas vidas. A partir dessa estética se formou uma tradição visual que fundou as bases da fotografia documental politicamente comprometida, e que continua presente no fotojornalismo contemporâneo.

É próxima dessa tradição visual que podemos inscrever a produção fotográfica de Yan Boechat.

A exposição "Visíveis e Invisíveis: Guerras, Exílios, Vivências" é composta por painéis fotográficos dispostos em espaços do campus da UNICAMP em Barão Geraldo, para vizualizar o mapa da exposição acesse a página inicial. Abaixo é possível consultar os conjuntos de imagens que compõem a exposição.

VISÍVEIS E INVISÍVEIS

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